
29 set Crescimento e Desenvolvimento
Angela Spinola e Castro e Adriana Siviero-Miachon – Médica do Setor de Endocrinologia Pediátrica, Departamento de Pediatria, da Universidade Federal de São Paulo.
O diagnóstico da Síndrome de Marfan pode ser difícil algumas vezes, principalmente durante a infância. Além de muitos pacientes não apresentarem a forma clássica da doença, a variabilidade fenotípica da síndrome é muito grande e algumas manifestações clinicas, principalmente as esqueléticas, evoluem com a idade e podem estar presentes em indivíduos normais (não afetados pela doença).
A alta estatura, entre todas as manifestações esqueléticas, é considerada, um dos critérios maiores de diagnóstico da Síndrome de Marfan (critérios de Ghent). Um aspecto característico é a desproporção dos segmentos corporais, com redução na relação do segmento superior/segmento inferior e aumento na relação entre envergadura/estatura (superior a 1,05).
As demais manifestações esqueléticas incluem deformidades torácicas, pectus carinatum, pectus escavatum, escoliose (>20graus) ou espondilolistese, expansão reduzida dos ombros (<170 graus), pés planos, protrusão do acetábulo e o sinal do polegar.
Poucos estudos foram feitos, até o momento, avaliando a historia natural do crescimento somático dos pacientes com Síndrome de Marfan, e além de serem na sua maioria estudos de corte, envolveram um pequeno número de pacientes.
A maturação sexual, o estirão puberal e o fechamento das epífises de crescimento, processos biológicos fundamentais para a determinação da estatura final em todos os indivíduos, também são pouco estudados na Síndrome de Marfan, assim como, também não há muita informação sobre a cronologia dos eventos puberais nesses pacientes e de que modo podem influenciar no desenvolvimento e na estatura final.
Hoje, há uma preocupação com a questão de um possível comprometimento na aquisição de massa óssea na Síndrome de Marfan, que embora seja dependente de fatores, genéticos, alimentares e hormonais, está diretamente correlacionada ao processo de desenvolvimento puberal.
O entendimento do processo de crescimento na Síndrome de Marfan ficou restrito durante muito tempo aos pacientes com doença bem estabelecida e sempre na contingência da avaliação das alterações de coluna, não sendo a alta estatura considerada como um problema. Nunca foi estabelecida uma estatura mínima a partir da qual os procedimentos cirúrgicos ou a terapêutica hormonal deveriam ser realizados, para tentar limitar a estatura ou minimizar algumas das suas principais complicações (escoliose, ou as discrepâncias entre pernas e tronco). Em muitos casos essas condutas precisam ser tomadas precocemente e dependem de um amplo entendimento do processo de desenvolvimento (desses pacientes), que ainda não temos.
Crescimento e desenvolvimento puberal
Em 1896 as manifestações esquéleticas que Marfan descreveu na síndrome foram chamadas por ele de “dolicostenomelia”, que significa longo, com as extremidades finas, sendo a alta estatura um dos aspectos marcantes da doença. A alta estatura é desproporcionada, caracterizando-se pela redução na relação, segmento superior/segmento inferior e envergadura/estatura superior a 1,05. As proporções corporais são consideradas mais importantes do que a própria estatura. As pernas crescem mais rapidamente do que o tronco durante a vida pós natal e no adulto normal, estima-se que a relação entre SS/SI seja aproximadamente 0,93, sendo maior no período pré-puberal.
A criança com Marfan já apresenta um índice diminuído durante a infância e quando adulto geralmente atinge um índice de 0,85. O comprometimento na coluna, cifoescoliose, altera a avaliação desse índice pelo encurtamento do tronco. As costelas também participam do crescimento longitudinal excessivo, com a formação do pectus excavatum, ou de pombo e com as variações de deformidade torácica.A escassez de tecido gorduroso é em parte atribuída ao crescimento acelerado, que impede o acumulo de gordura.
As pesquisas clínicas que avaliam o crescimento de pacientes com Síndrome de Marfan são muito restritas e quase todos os estudos são transversais, de corte, envolvendo um número pouco expressivo de pacientes. Prever o padrão de crescimento na síndrome sempre representou um desafio, visto que muitos pacientes em diferentes momentos da vida podem ter a estatura abaixo do percentil 95, ou até mesmo dentro da normalidade. O principal estudo de desenvolvimento na Síndrome de Marfan e talvez a única referência nessa área, foi publicado em 2002, por Erkula et al. e realizado na divisão de genética do hospital Johns Hopkins. Todos os pacientes estudados apresentavam historia familiar para a síndrome. Pacientes com mutação nova não foram avaliados.
Em apenas 15 pacientes foi possível obter dados de desenvolvimento desde o nascimento até o término do crescimento. A partir da avaliação longitudinal (retrospectivo e prospectivo) de 180 pacientes portadores da Síndrome de Marfan diagnosticados até 20 anos de idade (critérios de Ghent) os autores revisaram diversos parâmetros de desenvolvimento e construiram curvas padrão de comprimento/estatura e peso para ambos os sexos e para faixas etárias diferentes (0 a 36 meses e de 2 a 20 anos), para servir como referência na avaliação pondero- estatural dos pacientes com Síndrome de Marfan.
O crescimento excessivo inicia-se no período pré natal. As crianças com Síndrome de Marfan frequentemente nascem maiores em relação à população geral, 53,0 ± 4,4 cm (meninos) e 52,5 ± 3,5 cm (meninas), mas nos primeiros 3 anos de vida a estatura geralmente permanece entre a média e o limite das curvas para crescimento normal (percentil 50 a 95).
Em ambos os sexos, após os 3 anos de idade, a estatura esta acima do percentil 95 e durante a infância o crescimento é consistentemente maior, do que o da população normal. A estatura final média obtida para o sexo masculino foi de 191,3 ± 9,0 cm e 175,4 ± 8,2 cm para o sexo feminino. Estima-se que 75% da estatura de adulto seja atingida ao redor dos 9 anos de idade em meninos e aos 6,5 anos em meninas.
Em relação ao peso corporal, ao nascimento este é compatível com o percentil 50 da população normal, 3,51± 3,5 kg para o sexo masculino e 3,48± 0,68 kg para o sexo feminino. No geral o peso aos 12 meses permanece no mesmo percentil, com tendência a elevação, depois desse período. Os adultos masculinos e femininos atingem em média peso respectivamente de 80,8 ± 13,8 Kg e 65,0± 7,9 Kg. Esses índices estão um pouco abaixo do percentil 50 para a população não afetada, quando avaliados em relação à estatura.
A partir da avaliação das medidas de apenas 25 meninos e 23 meninas na fase da adolescência foi elaborado o gráfico de velocidade de crescimento que caracteriza o estirão durante o desenvolvimento puberal. Crianças com Síndrome de Marfan, de ambos os sexos, tem um ritmo de crescimento acelerado na primeira década de vida, mas 2 anos após atingirem a velocidade máxima de crescimento o ritmo desacelera para um padrão abaixo do percentil 50 da população geral
Da população geral, as meninas com estatura no percentil 50, iniciam o estirão em média aos 9,4 anos de idade, crescendo 6,6 cm /ano, enquanto nos meninos, a aceleração do crescimento ocorre ao redor de 12 anos com velocidade de crescimento de 6,6 cm /ano. Na Síndrome de Marfan o estirão inicia 2,4 e 2,2 anos antes, respectivamente em meninas e meninos. Em média o crescimento estatural associado à puberdade atinge uma velocidade de 8,0 cm /ano aos 10,4 anos nos meninos. As meninas não parecem atingir um pico de crescimento verdadeiro associado à puberdade.
Essas apresentam um declínio constante na velocidade de crescimento, com um pequeno período de estabilidade ao 7,4 anos e velocidade de crescimento de 7,0 cm/ano, relacionado ao inicio do desenvolvimento puberal. O ritmo de crescimento individual pode atingir 11,7 ± 1,9 cm/ano em meninos e 10,5± 2,8 cm/ano em meninas. A estatura excessiva é atingida através de um crescimento muito rápido, especialmente durante a primeira década de vida. A maioria dos pacientes apresentam uma curva de crescimento, pontuada por múltiplos estirões durante a pré adolescência e adolescência e um crescimento prolongado. Ainda não existem dados nacionais para referência na avaliação estatural.
Maturação esquelética – O processo de maturação esquelética é pouco estudado na Síndrome de Marfan. Inicia-se precocemente e tem uma duração bastante prolongada. Na idade de 12,8 anos+ 2,6 nas meninas e 11,4+2,5 para meninos a maturação ainda está na fase bem inicial (Risser 1). O nível 4 de Risser, que significa quase a finalização do processo de maturação óssea, ocorre ao redor de 15,8 ± 1,2 anos e 14,8±1,1 anos respectivamente nos meninos e meninas. O crescimento embora seja mais precoce, é também mais prolongado. O comprimento aumentado das pernas não está aparentemente relacionado à lentificação do fechamento epifisário, visto que esse já pode ser demonstrado ao nascimento, permanecendo durante a infância e adolescência.
Não há estudos avaliando a importância dos fatores étnicos, genéticos e,nutricionais, assim como dos fatores que possam modificar o ritmo de desenvolvimento puberal e influenciar no padrão estatural nesses pacientes.
A fisiopatologia do crescimento esquelético excessivo permanece em estudo. Ainda não está documentado como a mutação no gene que codifica a fibrilina-1 resulta em crescimento acelerado dos ossos longos, tubulares. As microfibrilas estão presentes na matriz cartilaginosa e no pericôndrio. Como o crescimento dos ossos longos é em parte controlado pela tensão do periósteo, é possível que essa tensão seja anormal na Síndrome de Marfan.
As fibrilinas 1 e 2 contêm varias cadeias que são homólogos ao fator transformador TGF beta e ambas as moléculas são capazes de ligar ao TGF beta, que é uma proteína, sabidamente envolvida com o crescimento ósseo. É possível que mutações na FBN1 resultem em concentrações anormais de TGF na placa de crescimento dos ossos tubulares. Os camundongos deficientes em fibrilina-1 tem uma atividade aumentada de TGF- beta. Os dados sugerem que o padrão de crescimento dos ossos longos siga um padrão desorganizado, mais do que uma estimulação excessiva do crescimento, porém muitas questões permanecem em aberto.
Correlação entre crescimento e morbidade
Está bem estabelecida a grande heterogeneidade da doença e sua variabilidade fenotípica. A forma clássica não está presente em todos os pacientes que muitas vezes têm doença ocular grave, sem alterações aórticas ou doença cardíaca, sem alterações esqueléticas. Praticamente não existem estudos que correlacionem a gravidade das alterações esqueléticas da doença, em particular a alta estatura com as outras manifestações clínicas. A pesquisa realizada por Vetter e colaboradores em 1990 foi uma das únicas que avaliou a correlação entre crescimento e as manifestações cardiovasculares a partir do estudo de 48 pacientes com Síndrome de Marfan dos quais 19, acompanhados durante 8 anos.
Em desacordo aos trabalhos que demonstraram que a dilatação aórtica esta positivamente correlacionada ao crescimento somático durante a infância e adolescência.ë importante ressaltarmos que 56% dos pacientes estudados já apresentavam aneurisma no inicio do estudo, embora a media de idade de inicio fosse ao redor de 10 anos (1,25 a 18 anos) e que 13% desenvolveram a dilatação durante o estudo.
É necessário estabelecer se o ritmo acelerado de crescimento agrava a doença cardíaca ou ocular ou se a gravidade dessas é geneticamente determinada sendo sua evolução independente do desenvolvimento. Esse aspecto é muito importante quando consideramos possíveis intervenções terapêuticas, quer seja da alta estatura ou da doença cardíaca. O aspecto mais importante é determinar em quais pacientes a estatura estará mais gravemente afetada e quais as manifestações que estarão associadas com maior frequência à alta estatura.
Terapia Redutiva do Crescimento
A alta estatura tem um grande impacto físico e psicológico nos pacientes com Síndrome de Marfan e a terapia para redução da estatura vem sendo discutida há muitos anos e ainda permanece bastante controvertida. O princípio da intervenção está na antecipação do processo puberal, através da administração de esteróides sexuais, estrógenos nas meninas e testosterona nos meninos. A redução final relatada varia entre 2,2 a 6,9 cm, mas os estudos não são randomizados. Um estudo recente (2005), realizado pelo grupo Dutch Marfan Working Group, utilizou etinilestradiol (100 a 300 mcg/dia) associado a medroxiprogesterona (5 a 10 mg/dia/1 semana) em meninas e injeções intra- musculares de testosterona (100 a 500 mg/ a cada 2 semanas).
O efeito redutivo do tratamento foi significativo apenas nos meninos, com diminuição de 5,5 cm quando utilizadas doses farmacológicas da medicação, mas esse resultado é questionável. A falta de resposta entre as meninas pode ser atribuída à amostra selecionada e à possibilidade das meninas já terem iniciado o estirão puberal quando foram envolvidas no trabalho.
Nas pacientes que iniciaram o tratamento antes da idade óssea de 13 anos houve um efeito redutivo da terapia de 5 a 20 cm. Os resultados da pesquisa realizada por nosso grupo mostram resultados efetivos desse tipo de intervenção no sexo feminino. Uma das principais dificuldades para avaliar o impacto dessas intervenções está no fato de que todos os métodos de previsão estatural na síndrome de Marfan não são efetivos e portanto é muito difícil calcularmos qual seria a estatura esperada antes da introdução da medicação. Para a obtenção de um resultado positivo o tratamento deve ser iniciado antes ou bem no inicio do desenvolvimento puberal, do mesmo modo que é feito em indivíduos com alta estatura constitucional.
O tratamento deve ser descontinuado quando ocorre o fechamento das epífises de crescimento. Há um crescimento pós-tratamento, sobretudo no tronco, que parece ser insensível ao tratamento com hormônios sexuais. Em ambos os sexos é essencial o acompanhamento da função hepática, do lípides, e nas meninas a avaliação do espessamento endometrial e do desenvolvimento das mamas.
Os efeitos adversos relatados e de pouca gravidade, entre os quais o mais prevalente é a acne. Para os meninos aumento do peso e ganho muscular são considerados efeitos positivos. Estrógenos em doses elevadas podem estar correlacionados à infertilidade na maturidade. É muito importante discutir com os pais os benefícios e as dificuldades do tratamento, incluindo o fato de que a estatura estará sempre acima do padrão médio e que não existem garantias de resultados.
Conclusão
Foram muitos os avanços obtidos com a identificação da mutação no gene da fibrilina no diagnóstico e na compreensão da fisiopatologia da doença. A questão do desenvolvimento, no entanto, precisa ser melhor avaliada para determinarmos de forma mais apropriada como esses pacientes crescem, como é o desenvolvimento puberal, como se processa o fechamento epifisário e a aquisição de massa óssea.e principalmente de que forma podemos intervir em cada um desses processos para minimizar os comprometimentos que a doença acarreta. São também necessários estudos que avaliem melhor qual a correlação entre a evolução estatural e as demais manifestações clínicas da doença.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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Este texto foi escrito para o livro Síndrome de Marfan, de Ana Beatriz Alvarez Perez e Antonio Carlos Carvalho (Editora Atheneu).
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